TAXONOMIA COMPREENSIVA DA ARTE PÚBLICA (por José Guilherme Abreu)

A- EIXO DA NARRATIVIDADE: o lugar como unidade de simbolização

  1. Lugar de Memória

O lugar de memória fixa, interpreta e transmite factos históricos ou sucessos cívicos com o propósito de os rememorar e inscrever na memória coletiva. Pode referir-se a:

  • Figuras notáveis no plano da intervenção cívica: Navegadores, Combatentes, Descobridores, Estadistas, Cientistas, Letrados, Artistas, Inventores, Prelados, Médicos, Beneméritos, etc…
  • Factos ou acontecimentos coletivos marcantes (positivos ou negativos): Guerras, Tratados, Alianças, Descobertas, Catástrofes, Perseguições, Massacres, Revoluções, Contrarrevoluções, Celebrações, Memórias, etc.
  1. Lugar de Devoção

O lugar de devoção fixa, interpreta e transmite crenças religiosas ou registos sagrados com o propósito de lhes prestar culto e de os inscrever consciência coletiva. Pode referir-se a:

  • Imagens sagradas ou figuras santificadas do catolicismo: Cristo; Virgem Maria; Santíssima Trindade; Santos Canonizados; Beatos; Anjos; Arcanjos; etc.
  • Registos de crenças ou práticas religiosas ativas: Ex-votos; Epifania; Batismo; Anunciação; Milagres; Transfiguração; Via Sacra; Crucificação; Ressurreição; Juízo Final; Martírios; etc.

B- EIXO DA PLASTICIDADE: o elemento como signo de qualificação

  1. Elementos de Animação Arquitetónica

Os elementos de animação arquitetónica integram e qualificam edifícios, surgindo como apontamentos estéticos de valorização de singularidades arquitetónicas. Podem referir-se a:

  • Obras integradas em singularidades arquiteturais: Escultura não-rememorativa de fachada; baixo-relevo; azulejo; mosaico; pintura mural; vitral, etc.
  • Obras justapostas a singulares arquiteturais: Escultura não rememorativa; azulejo, mosaico e pintura mural autónomas; etc.
  1. Elementos de Integração Espacial (Urbana/Rural/Paisagística/Territorial)

Os elementos de integração espacial animam e qualificam espaços, surgindo como apontamentos estéticos de valorização de conjuntos. Podem referir-se a:

  • Obras que qualificam conjuntos edificados: Escultura não-rememorativa em Praças, Eixos, Bairros, Pontes Barragens; Desenho de pavimento; Artes da terra; etc.
  • Obras que qualificam espaços naturais: Escultura não-rememorativa em trechos paisagísticos (miradouros, promontórios, montanhas); Estruturas; Artes da terra; etc.

C- EIXO DA SUBLIMIDADE: o polo como superlativo da simbolização

  1. Polos de integração monumental

Os polos de integração monumental fixam traços identitários comuns. Podem ser:

  • Monumentos que simbolizam o tecido social, independentemente do tipo ou localização.
  • Memoriais que simbolizam o substrato cultural, independentemente do tipo ou localização.

Os polos de diferenciação monumental fixam traços identitários específicos. Podem ser:

  1. Polos de diferenciação monumental
  • Monumentos que simbolizam um setor social, independentemente do tipo ou localização.
  • Memoriais que simbolizam um registo cultural, independentemente do tipo ou localização.

 

Explicitação da taxonomia.

Embora vise estabelecer uma metodologia classificatória, a grelha que se propõe concebe-se a partir de um modelo compreensivo, hierárquico e dialético, em vez de um modelo discriminatório, sistemático e linear.

Modelo compreensivo, porque se concebe a partir de uma análise não tipológica, não formal e não estilística das obras a “classificar”. O que discrimina as peças umas das outras não são as suas características materiais ou convencionais, mas sim o seu “programa simbólico”, a sua “função específica” e o seu “poder de inscrição”.

Modelo hierárquico, porque se concebe de acordo com uma escala de valores, distinguindo “valores narrativos”, “valores plásticos” e “valores de sublimidade”.

Modelo dialético, porque tratando-se de um modelo compreensivo, o mesmo é suscetível de evoluções no tempo, decorrentes de trânsitos de obras de um setor para outro, em função de alterações de perceção ou de estatuto que as peças possam vir a registar.

Este último aspeto é particularmente sensível nas obras relacionadas com o “Eixo da Sublimidade”, cujo estatuto, de caráter excecional, depende de um grau de valoração particular, variável no tempo e no modo.

Começando pela designação “Eixo da Narratividade”, a mesma pretende expressar a perspetiva de análise que permite detetar e perceber o “programa simbólico” associado às peças que nele se incluem.

Partindo do conceito de “Lugar de Memória”, proposto e teorizado pelo historiador Pierre Nora (1931-), na obra homónima (Nora, 1984: XVII-XLII), onde o autor traça os parâmetros de diferenciação entre memória e história, apresentando os “lugares de memória” como as instâncias – os precipitados – onde a história e a memória se combinam, ao registo de factos e de vivências, nós acrescentamos o registo de crenças e de cultos, estabelecendo a par dos “lugares de memória” ou “lugares de devoção” que assim integram e significam o “programa de simbolização”, na medida em que veiculam narrativas históricas ou sagradas.

Já a designação “Eixo da Plasticidade” – que numa fase inicial denominei “Eixo da Imageabilidade”, para tanto criando um neologismo que agora julgo não se justificar – pretende expressar a perspetiva de análise que permite detetar e perceber a “estrutura/função de qualificação” dos espaços.

Partindo do conceito de “escultura de animação arquitetónica” (Andrade, 1999: 114-203) proposto e pelo museólogo Sérgio Guimarães de Andrade (1946-1999), da mesma forma à animação de singularidades construtivas, nós vimos a oportunidade de alargando a escala, propor o conceito de “qualificação urbana”, para assim traduzir a valorização de conjuntos construídos, em contraponto à valorização de singularidades arquitetónicas. A ideia de valorização em ambos os casos é a de uma valorização estética, através da integração de elementos não rememorativos – artes plásticas – distinguindo-se aqueles elementos que se integram nos edifícios, daqueles que são colocados ao seu lado, mas conotados com eles.

Por fim a designação “Eixo da Sublimidade”, a mesma pretende expressar a perspetiva de análise que permite detetar e perceber o “poder de inscrição” de um conjunto limitado de monumentos e de memoriais.

Partindo do conceito de “valores de sublimidade” defendido pelo arquiteto Pedro Vieira de Almeida (1933-2011) na sua tese de doutoramento sobre os Concursos de Sagres, e reiterado em A Arquitetura do Estado Novo (Almeida, 2002: 75) nós pensamos que determinadas obras têm o poder de intensificar programas simbólicos específicos, e por seu intermédio inscrever na consciência coletiva, de forma indelével, mensagens positivas ou negativas.

 

Bibliografia
ABREU, José Guilherme. 2005. A Escultura no Espaço Público do Porto no Século XX. Inventário, História e Perspectivas de Interpretação. ed. 1, 1 vol., ISBN: 84-475-2765-4. Barcelona: e-Polis: https://www.academia.edu/
ABREU, José Guilherme. 2005. “Arte Pública e Lugares de Memória”, Revista da Faculdade de Letras – Ciências e Técnicas do Património, 4: 215 – 259. https://www.academia.edu/
ABREU, José Guilherme. 2007. Escultura Pública e Monumentalidade. Estudo Transdisciplinar de História da Arte e Fenomenologia Genética. Lisboa: FCSH-UNL (Tese de doutoramento): https://www.academia.edu/
ALMEIDA, Pedro Vieira de. 2002. A Arquitetura do Estado Novo. Uma leitura crítica. Os Concursos de Sagres. Lisboa: Livros Horizonte.
ANDRADE, Sérgio Guimarães de. 1997. Escultura Portuguesa. Lisboa: CTT Correios de Portugal.
NORA, Pierre. Entre Mémoire et Histoire, IN, NORA, Pierre (dir.). 1984. Les Lieux de Mémoire I. La République, Gallimard: Paris.